Somos os mais importantes do mundo. Sim, somo-lo, porém, apenas, para nós mesmos. Temos toda a nossa existência calcada a partir de nossos olhos, o mundo é o que é para cada um de nós então, como nossas visões nunca serão exatamente iguais, há, aproximadamente, seis bilhões de mundos no mundo. A questão é que, à medida que pessoas vão nascendo e outras morrendo, acontecem dois fenômenos: nasce e morre um mundo e o mundo, como totalidade dos mundos, modifica-se.
O homem julga-se extremamente importante, mas para além de si não importa muito. O que queremos dizer é que a existência é plena, apenas, para cada um, pois ninguém se importará mais com outrem que consigo mesmo, e isso é óbvio e justo. Por mais que sejamos solidários, a solidariedade é uma satisfação pessoal, ninguém é solidário contra a vontade. E se julgamos que ninguém poderá desenvolver nossos afazeres como nós, isso é verdade em partes, porque, somente, nós mesmos podemos fazer o que desejamos da nossa forma, mas a forma do outro é a melhor para si. Julgamos que sentirão nossa falta quando morramos, como nós sentiremos a das pessoas queridas. É verdade, belo veredicto, contudo o mundo continuará quase o mesmo, apenas, sem nós. Os automóveis circularão, as pessoas seguirão com suas vidas e mundo acabará para nós e se renovará com a chegada de outro ser ao mundo que será seu mundo próprio. Ou seja, somos, deveras, apegados a nós, e isso não é um erro, pois não há outra forma de existência, haja vista que, para nós, tudo circula a nossa volta.
Alguns dirão que pensar assim é por demais triste, contudo, creio que é por demais realista percebermos a pequenez de nossa vida, a falta de sentido da existência, o quão pouco e impotente somos. A existência é isto: apenas existir, sem razão, sem motivo, sem ilusão. A vida é vazia e não acreditamos mais na recompensa de uma vida além-túmulo. Trabalharemos, com esforço conquistaremos nossos objetivos, mas de nada nos servirá, a não ser para um deleite efêmero. Então, deixo-lhes um cruel, por ser assaz realista, poema de Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa, que, toda vez que o leio, faz-me pensar sobre isso.
Se te queres matar, por que não te queres matar?
Ah, aproveita! que eu, que tanto amo a morte e a vida,
Se ousasse matar-me, também me mataria...
Ah, se ousares, ousa!
De que te serve o quadro sucessivo das imagens externas
A que chamamos o mundo? A cinematografia das horas representadas
Por atores de convenções e poses determinadas,
O circo policromo do nosso dinamismo sem fím?
De que te serve o teu mundo interior que desconheces?
Talvez, matando-te, o conheças finalmente...
Talvez, acabando, comeces...
E, de qualquer forma, se te cansa seres,
Ah, cansa-te nobremente,
E não cantes, como eu, a vida por bebedeira,
Não saúdes como eu a morte em literatura!
Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente!
Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém...
Sem ti correrá tudo sem ti.
Talvez seja pior para outros existires que matares-te...
Talvez peses mais durando, que deixando de durar...
A mágoa dos outros?... Tens remorso adiantado
De que te chorem?
Descansa: pouco te chorarão...
O impulso vital apaga as lágrimas pouco a pouco,
Quando não são de coisas nossas,
Quando são do que acontece aos outros, sobretudo a morte,
Porque é coisa depois da qual nada acontece aos outros...
Primeiro é a angústia, a surpresa da vinda
Do mistério e da falta da tua vida falada...
Depois o horror do caixão visível e material,
E os homens de preto que exercem a profissão de estar ali.
Depois a família a velar, inconsolável e contando anedotas,
Lamentando a pena de teres morrido,
E tu mera causa ocasional daquela carpidação,
Tu verdadeiramente morto, muito mais morto que calculas...
Muito mais morto aqui que calculas,
Mesmo que estejas muito mais vivo além...
Depois a trágica retirada para o jazigo ou a cova,
E depois o princípio da morte da tua memória.
Há primeiro em todos um alívio
Da tragédia um pouco maçadora de teres morrido...
Depois a conversa aligeira-se quotidianamente,
E a vida de todos os dias retoma o seu dia...
Depois, lentamente esqueceste.
Só és lembrado em duas datas, aniversariamente:
Quando faz anos que nasceste, quando faz anos que morreste.
Mais nada, mais nada, absolutamente mais nada.
Duas vezes no ano pensam em ti.
Duas vezes no ano suspiram por ti os que te amaram,
E uma ou outra vez suspiram se por acaso se fala em ti.
Encara-te a frio, e encara a frio o que somos...
Se queres matar-te, mata-te...
Não tenhas escrúpulos morais, receios de inteligência! ...
Que escrúpulos ou receios tem a mecânica da vida?
Que escrúpulos químicos tem o impulso que gera
As seivas, e a circulação do sangue, e o amor?
Que memória dos outros tem o ritmo alegre da vida?
Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada homem.
Não vês que não tens importância absolutamente nenhuma?
És importante para ti, porque é a ti que te sentes.
És tudo para ti, porque para ti és o universo,
E o próprio universo e os outros
Satélites da tua subjetividade objetiva.
És importante para ti porque só tu és importante para ti.
E se és assim, ó mito, não serão os outros assim?
Tens, como Hamlet, o pavor do desconhecido?
Mas o que é conhecido? O que é que tu conheces,
Para que chames desconhecido a qualquer coisa em especial?
Tens, como Falstaff, o amor gorduroso da vida?
Se assim a amas materialmente, ama-a ainda mais materialmente,
Torna-te parte carnal da terra e das coisas!
Dispersa-te, sistema físico-químico
De células noturnamente conscientes
Pela noturna consciência da inconsciência dos corpos,
Pelo grande cobertor não-cobrindo-nada das aparências,
Pela relva e a erva da proliferação dos seres,
Pela névoa atômica das coisas,
Pelas paredes turbihonantes
Do vácuo dinâmico do mundo...