quinta-feira, 24 de junho de 2010

Muito natural, não?

Certas coisas são naturais do ser humano, como por exemplo, quando temos necessidades fisiológicas, vamos ao banheiro e pronto, isso é natural. Será? Ponderemos. Se estamos em outro país de cultura ocidental, já encontramos diferenças que desnaturalizam certos conceitos. Para seguir pensando sobre isso deveríamos definir cultura. Esse passo é mais complexo, mas tentemos. Escolhemos o conceito de Williams, o qual trata a cultura como, grosso modo, um sistema significante através do qual uma ordem social pode comunicar-se e investigar-se.
Sigamos pensando em conceitos ações consideradas naturais. Quando mencionamos visitar um país de cultura ocidental, ignoramos que, dentro de um país, subsistem diversas culturas. Tomemos o Brasil como referência. Em nosso país, existem comunidades indígenas autóctones, logo não são menos brasileiros do que nós, mas vivem sob outros paradigmas culturais que não ocidentais. Assim, se em uma tribo (isto é extremamente hipotético) o ato de defecar é coletivo, os membros dessa comunidade não se estranhariam de um sujeito defecando à vontade na frente de todos. Isso pode chocar, no entanto aponta para que até os atos julgados mais naturais não o são. São, na verdade, construções culturais arraigadas a nós graças a uma forte tradição e perpetuação de uma hegemonia que não se deixa bater.
Mudemos o enfoque. Instaurados em uma cultura não ocidental, do outro lado do mundo, tudo nos parece bárbaro, sem percebermos que estamos, ainda, com uma ideologia próxima a dos romanos, que rejeitavam tudo o não originado, adaptado, integrado ao Lácio como bárbaro, pior, terrível. Vemos com assombro a entrega religiosa e fanática de muçulmanos, horrorizamo-nos com a sociedade estamental indiana toda baseada nas castas. No entanto, apagamos da memória o que foi o Feudalismo, as Cruzadas; ignoramos o fanatismo em Cristo que leva ao auto-flagelo, ao desprezo dos diferentes ou dos que nos desprezam, pois o que vale, o que é natural e, portanto, correto é a nossa perspectiva, é a nossa cultura.
Isso não é mero desprezo da alteridade, porque vai muito mais além. Ao entender como natural a língua, as roupas, as atitudes mais triviais, rechaçamos que tudo, ou 99,9% de tudo, é construção social. Obviamente, é fácil esquecer-se disso, afinal nascemos e já temos uma cultura (im) posta, à qual devemos adequar-nos. Entretanto, ao pensarmos sobre essas questões e tentarmos desnaturalizar conceitos - isto não que dizer que não deve haver atitudes automáticas, pois, sim, devemos adequar-nos ao meio, embora devamos e possamos criticá-lo – veremos como é possível respeitar o outro, como também contestar e posicionar-nos frente à dura realidade vivida.
E, para deixar mais um objeto de reflexão, pensemos no mundo natural. Há pouca coisa natural ali, pois tudo que se planta é um cultivo, logo uma cultura... Sobra quase nada!

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Adeus, Saramago. Até logo, Saramago

Não gostaria que este espaço se tornasse algo parecido com as famílias grandes e sem contato cujos encontros acontecem à beira de um caixão em uma sala de velórios, contudo não se pode eximir a necessidade que, mesmo sem tempo graças à síndrome de fim de semestre, algumas palavras fossem escritas para o grande Saramago.
A consternação dos amantes da literatura, escritores e comunistas é enorme. José Saramago representava os três em um só. O nosso único Nobel em língua portuguesa se foi hoje, tolhendo-nos a expectativa por seus próximos, bem construídos, argutos, irônicos, bem humorados, sem deixar de denunciar, simbolizar e retratar as mazelas humanas, livros.
Principalmente, as narrativas de José Saramago mesclam algo que é raríssimo hoje em dia: boa literatura e boa leitura. Conseguiu o escritor português criar uma literatura de excelente qualidade, com tramas narrativas extremamente bem amarradas, cujo prazer da leitura estava presente. Seus temas fantásticos ou com inversões do que a história nos conta deliciaram a todos os que o leram.
Resta dar adeus ao escritor eterno em seus livros, mas materialmente morto e acabado, pois, ateu como era, ateu como sou, acreditamos que, morta a matéria, não resta nada. No entanto, facilmente encontrável em seus livros abertos a todas as penetrações possíveis. Reencontrá-lo-emos em suas páginas. Então, fiquemos com algumas palavras suas de “A Jangada de Pedra”:
“Da noite para o dia a Europa apareceu coberta de inscrições. Aquilo que ao princípio talvez não tivesse passado de um mero e impotente desabafo de sonhador, foi alastrando-se até tornar-se grito, protesto, manifestação de rua.”