quarta-feira, 21 de julho de 2010

Negociação de sentidos

Ninguém é dono dos sentidos que produz. Então, sabemos que uma frase, um texto, uma obra de arte é uma constante negociação entre locutores e interlocutores. As palavras vêm permeadas de significações subjetivas que impossibilitam sua expressão total, logo elas nunca alcançam a completude.
Dessa forma, a comunicação sempre depende de algo mais, de uma negociação de sentidos, de uma projeção de imagens. Então, chegamos a um ponto interessante para desmitificar uma prática recorrente entre “críticos” de literatura, “professores” de literatura e o senso comum, influenciado pelos dois primeiros. Essa prática diz respeito à clássica pergunta “o que o autor quis dizer?”. Bem, para responder a essa questão, necessitaríamos de uma conversa com o autor, precisaríamos que ele estivesse vivo e se lembrasse, exatamente, do que quis dizer.
Portanto, passemos a outras formulações, tais quais os sentidos que estão postos na obra e podem ser encontrados e justificados. Quem faz isso são os críticos de literatura e os professores de literatura, contudo, infelizmente, esses profissionais estão em menor número do que os “críticos” e os “professores”. Retomando: os sentidos produzidos por um autor em determinada obra vêm permeados de outras significações que, muitas vezes, passam despercebidas pelo artista e dão margem para que o interlocutor perceba-as, aproprie-se delas e crie a sua própria leitura. Essa leitura se bem justificada passa a ser mais uma leitura tão perspicaz quanto a do autor.
Assim, uma obra que permite muitas possibilidades de leituras acaba por tornar-se um clássico, sem que uma interpretação de sentidos exclua a outra. Nessa senda, as aberturas de interpretação permitem que se busquem os sentidos mais recônditos sem esgotá-los, lembrando-se sempre que isso tudo, para ter valor, precisa ser extremamente bem justificado, abrindo possibilidades para várias abordagens da obra de arte. Portanto, a negociação de sentidos não termina nunca mesmo que não exista mais o outro negociante.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Orvalho

Os raios de sol derretem a geada, transformando-a em orvalho novamente. A vida toda ao reverso. Os fachos de luz atravessam pelo meio das folhas das árvores e aquecem apensa onde tocam. O frio permanece ao redor. Abro a janela, vejo concreto e frio. Sim, é possível ver o frio. Ele está a nossa frente, na paisagem. A fumaça do solo do orvalho, que evapora, é nuvem. São imensas nuvens brancas na terra. O frio mata, mas também embeleza.
Permito-me um atraso nas minhas obrigações para observar o frio. Os pássaros encolhidos, as pessoas a levantarem-se de suas camas, os que as têm, também encolhidas. Alargo-me, a paisagem do frio inunda nossa noção de estética e me faz sentir bem, com frio, mas bem. O sol sobe um pouco mais, a fumaça aumente, o tempo passa. Agora a árvore tapa um pouco mais o sol, a fumaça estanca, o tempo pára. Poderia haver parado naquele instante, não deveria mais correr o ponteiro do relógio, para o mundo tornar-se fachos de luz entre as árvores, orvalho, fumaça e frio.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Paradigmas internos

Seja o yin-yang na tradição oriental, seja a dualidade percebida por Deus depois do Dilúvio, o bem e o mal existem em nós, ou melhor, o bom e ruim. Então, está dentro, bondade, maldade, ciúme, confiança, raiva, tolerância, flexibilidade, rigidez. Contudo, geralmente, predominam alguns elementos desses pares, fazendo com que os outros se apaguem ou, ao menos, sejam obliterados. Portanto, somos tudo e nada concomitantemente, somos o que deixamos vir à tona e somos o que escondemos, mas existe.
Conhecem-nos ou, reconhecem-nos como sendo aquilo que mostramos, que evidenciamos. Nós nos conhecemos como aquilo que queremos mostrar. Esses dois pontos de vista não são idênticos, havendo, assim, um problema de identidade do sujeito. No afã de mostrar que somos bons, ou agradáveis, ou a projeção que o outro faz de nós, esquecemo-nos de ser quem somos, de conviver com os elementos das dicotomias que mais nos aprazem, tornando-nos diferentes de nós mesmos.
Neste ponto, crescem os problemas porque ao deixarmos de mostrar-nos como antes nos mostrávamos, criamos um novo paradigma de escolha dos elementos das dicotomias e convivemos com uma nova postura, convivendo, destarte, com um ser novo para nós. Isso também causa o desconforto de quem convive conosco e conhecia um sujeito distinto deste que se apresenta. O desconforto dos outros em relação a nós, e nosso próprio desconforto faz-nos perceber o quão desagradável é conviver com o que não queremos, tornando-nos insuportáveis a nós mesmos.
Pode-se imaginar, neste momento, que este texto é conservador, contrário às mudanças, contudo, creio que é exatamente o contrário. Sim, aceitar as mudanças dos outros. Aceitar que temos certo tipo de atitudes que poderiam ser diferentes e mudá-las, sim. Porém, a mudança sempre deve vir para que a possamos experimentar em direção à satisfação, isto é, a mudança é boa quando nos faz sentir melhor. Então, essa troca deve ir ao encontro dos elementos das dicotomias e não estabelecer um novo paradigma interno, pois somente os paradigmas externos devem ser rompidos. Se os internos se rompem, perdemos aquilo que comumente chamamos essência!